domingo, 23 de março de 2008

SOBRE O HORROR



por Raquel Hoersting

POR RAFAEL RIBEIRO BARBOSA

O mosaico do espírito corrompido, da demência da alma, a mise-en-scène do inferno em vida, o sentido dramático da transformação pela corrupção e, nas palavras do argentino Jorge Luis Borges, "o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu". Coração das Trevas (Heart of Darkness) é o clássico de todos os tempos sobre o desequilíbrio humano e a desmontagem da realidade, o anúncio do silêncio profundo, da selva impenetrável.

Joseph Conrad (Józef Teodor Nałęcz Korzeniowski) nasceu em Berdyczew, Polônia, em dezembro de 1857, e morreu em Bishopsbourne, Inglaterra, em agosto de 1924. Um dos mais significativos ficcionistas da língua inglesa, veio aprender plenamente o idioma somente após os vinte anos de idade. Marinheiro por quase duas décadas, alcançando o posto de capitão-de-longo-curso (que é quem comanda as naus comerciais), navegou pela Ásia, África, América e Europa. Viagens que claramente inspiraram temas para os seus dezessete romances e ainda contos e novelas.

Escrito em 1902, Coração das Trevas representou e representa mais do que uma ficção crítica sobre o colonialismo europeu. A obra transcendeu, assim, a mera problematização da política imperialista. O romance parte da temática da civilização construída a partir da sofisticação das leis predatórias que regem a vida no planeta, de atos de barbárie para com a suposta barbárie, da civilização edificada sobre ações não civilizadas.

Porém, o tema é um ponto de partida. Joseph Conrad, como aqueles poucos que portam o fogo sagrado, foi além do trinômio social-econômico-político, não ignorando este, porém, o esgotando junto à subjetividade do homem frente ao que desconhece, frente ao ininteligível terror provocado por semelhantes e imposto pelo cosmo que nos rodeia e inclui.

O GRANDE-RIO

A história é a do capitão Charlie Marlow em viagem à África, encarregado por uma companhia belga de exploração de marfim de subir o grande-rio, nas entranhas da selva africana, no interior do Congo, e localizar, dentro da gigantesca mata, Kurtz, o chefe de um posto avançado da companhia. Ao chegar ao continente, Marlow se depara com os negros acorrentados como animais, com o peso da descontrolada ocupação européia, com a violência desmedida por parte dos colonizadores, com a fome, com as doenças “...de uma ganância insensata e desapiedada”. Tudo pelo marfim que “escorre” da floresta, tudo pelo precioso marfim. Então, no Congo, ouve o nome de Kurtz. E vai ouvi-lo muitas vezes até estar convencido de que não se trata de um homem, mas de uma aparição fantasmagórica, de uma lenda. Kurtz está isolado na selva e é o responsável pelo posto comercial localizado estrategicamente “... um homem extraordinário, mensageiro da misericórdia, da ciência, do progresso... do diabo”. Kurtz não é mais humano, é uma entidade.



por Raquel Hoersting




Entre o naufrágio do primeiro barco e a incursão de Marlow rio adentro, decorrem meses. A personagem não viaja sozinha, a acompanham funcionários da empresa, peregrinos, nativos canibais. As histórias sobre Kurtz soam impossíveis, tudo parece, à medida que se aproximam do destino, insano e irreal. “Subir aquele rio era o mesmo que viajar no tempo até os primórdios do mundo, quando a vegetação crescia agreste e desordenada e árvores imensas reinavam sobre todas as coisas”.

Ao se embrenhar nos labirintos da floresta, Marlow percebe que a sombra de Kurtz parece se estender por todo aquele mundo sombrio. Os riscos aumentam. Na água, os bancos de areia, nas margens, os inimigos de dentro da selva. Deve ainda escapar do ataque de negros comandados pelo próprio Kurtz. E, enfim, o Kurtz que encontra, naquele reino verde e primitivo, não é mais o filho de pai meio-francês e de mãe meio-inglesa, não é o membro da Sociedade Internacional para Supressão dos Costumes Bárbaros, também não é mais o homem por quem a noiva, no Reino Unido, mantém o luto respeitoso. Movido pela cobiça - que a mãe-terra plantou em sua carne e com a qual os céus forjicaram o seu ser - ele transformou-se no líder dos nativos, tomado pelo cio messiânico... convertido no lunático, na alma sinistra. Comanda os autóctones pelo medo, através de rituais e práticas macabras aos olhos de Marlow, por meio de armas que os habitantes da floresta desconhecem, mas entendem.

Ao entrar nesse mundo insuportavelmente estranho, contudo, como em um sonho – de alguma forma – um tempo e uma terra que parecem velhos conhecidos, Marlow vislumbra outra imagem, diferente da primeira e mais nítida do que suas impressões aterrorizantes. A figura ameaçadora de Kurtz é o reflexo de um corpo doente e prestes a morrer. Uma sombra débil do mal que representara até ali. É, afinal, Kurtz  a presença maligna no coração da floresta?

O APOCALIPSE E O EFEITO CAOS 

A ficção literária de Joseph Conrad, que inspirou o cineasta norte-americano Francis Ford Coppola a realizar a ficção cinematográfica Apocalypse Now (1979), é o clássico assombroso que descreve a experiência humana em um quadro que nos parece inumano, mas, descobrimos ao ler, é humano e ainda mais misterioso e assustador. Não é “essencialmente” humano, já que inclui a realidade profunda, aquela que transformamos em mito. Portanto, nada me parece mais falso do que a leitura de Coração das Trevas como tão somente uma crítica ao espírito colonialista, ao europeu branco e de coração corrompido a profanar a pureza do continente original, mesmo que esta tenha sido a intenção do autor, o que eu duvido, mas não posso assegurar.

Francis Ford Coppola adaptou a história para a Guerra do Vietnã (1958-1975), transpondo para as trincheiras a ficção de Conrad. Mergulhada numa aura caótica, a produção do filme foi um pesadelo interminável que quase arruinou a carreira de Coppola. Filmando na Ásia, afundado em dívidas, prestes a perder a sua casa e empenhando todos os recursos e potencial nas filmagens, consta ainda que o diretor reescrevia o roteiro diariamente, com o livro em mãos... em meio à lama, aos mosquitos, ao calor, ao infarto do protagonista, ao elenco drogado, a desentendimentos de toda ordem e à pane da infra-estrutura. Quase arruinou financeiramente o estúdio. A salvação da lavoura só ocorreu em Cannes com a Palma de Ouro e também por conta da bilheteria maciça, é claro. Em 2001, o filme foi relançado novamente em Cannes, vinte e dois anos depois da premiação, com 53 minutos a mais e "rebatizado" de Apocalypse Now (Redux).

A guerra sangrenta é um reflexo cultural da bestialidade telúrica, a que fingimos ser exclusividade humana, esquecendo o mito ou o lendo equivocadamente. Ou simplesmente não observando a história natural. De qualquer forma, a imagem do continente africano ocupado, as águas do grande-rio e as trevas da floresta são evocações ainda mais poderosas e inexprimíveis.

[agosto de 2001]

domingo, 2 de março de 2008

VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA



por Raquel Hoersting


O absolutista comemora com alarido sua visão simples: o relativista só vê alguém que está inconsciente de seus próprios antolhos. O absolutista desfila seus bons e sólidos fundamentos na observação, razão, objetividade, verdade e fato. O relativista só vê fetiches. O absolutista empenha-se em falar para a posteridade, com a linguagem dos anjos, mas o relativista só ouve uma das versões entre muitas, a subjetividade do aqui e agora. O absolutista empenha-se em ler a natureza em sua própria linguagem, mas o relativista insiste que a natureza não fala e nós ouvimos apenas o que escolhemos ouvir. O absolutista dita a lei, mas o que o relativista ouve são só brados e apregoações. Ou, quando a voz relativista, como é ouvida de filósofos como Nietzsche ou James, começa ela mesma a soar e parecer estridente, como muitas vezes acontece, e quando então o relativista oferece concessões, o absolutista só ouve insinceridade.

Simon Blackburn em Verdade: um guia para os perplexos; página 22




VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA

Por Rafael Baliardo

O nome do livro simplesmente é Verdade. A capa da edição brasileira, além dos dados usuais – o nome do autor, a editora e o "subtítulo" (Um guia para os perplexos) –, traz ainda um imenso ponto de interrogação sobre um fundo em terracota. Poucas coisas soam tão honestas quanto um ponto de interrogação, especialmente em um livro qualificado como guia sobre "a verdade”. Ainda na capa, o nome do autor é capaz de desencorajar a relutância dos mais criteriosos em relação à credibilidade da obra (com um título desses, todo cuidado é pouco): trata-se de Simon Blackburn, professor de filosofia da Universidade de Cambridge, Inglaterra, colaborador do influente Dicionário Oxford de Filosofia e que escreveu os populares Think (em português, apenas pelo selo lusitano Gradiva) e Being Good: A Short Introduction to Ethics. E não se engane o leitor, o fato de os livros serem dirigidos ao grande público não os desabona. Pelo contrário, o scholar inglês Simon Blackburn é o primeiro a esclarecer, em entrevistas e conferências, que apresentar a filosofia a estudantes e a leigos é um trabalho nobre e árduo. E faz questão de lembrar que filósofos como David Hume e James Hill escreviam para os legisladores, bem como para o público em geral.

Os tempos são outros, é evidente. E talvez, justo por isso, a presença de um livro como Verdade: um guia para os perplexos, nas estantes das livrarias, seja mais oportuno do que avaliamos. No Brasil, o mérito é da editora Civilização Brasileira, que disponibiliza uma bela edição em português (a tradução de Marilene Tombini é de alto nível).
Por afinidade, o lançamento de Blackburn, é lógico, deveria ficar exposto próximo a obras de filosofia, mas, por um intuito estratégico, deve ficar ao lado de títulos, digamos, mais embaraçosos aos olhos de alguns, como Mais Platão, menos Prozac ou Jesus, o maior psicólogo que já existiu, seja por oferecer resistência aos vizinhos ou beneficiar-se do potencial de atração destes.

Aos perplexos a quem o livro é direcionado, Blackburn acabou dedicando um singular manual de filosofia concebido em torno da questão que é o epicentro de toda a ciência: o conceito de verdade. O ponto de partida e o eixo dos ensaios que formam o livro (agrupados em tom de manual) se orientam por uma constatação – a filosofia sempre foi coisa de oponentes, tais quais a política e os esportes. E ao mapear as guerras pela busca da verdade, o autor nos apresenta, não só, uma visão de como a filosofia nasceu e evoluiu, mas argumenta sobre a própria possibilidade de existência da filosofia.

Blackburn entregou-se ao desafio de fazer justiça aos dois exércitos que, há séculos, travam uma luta quase sem tréguas. De um lado, os filósofos que respondem a um temperamento absolutista e, de outro, os que se inflamam e encontram forças no temperamento relativista. Fazer justiça a ambos os lados, ao absolutismo e ao relativismo, entretanto, sem, para isso, soar indiferente ou em cima do muro e, menos ainda, tentar aplicar uma taxonomia artificial ao dividir em grupos os filósofos de todos os tempos. O que não impediu o autor de reconhecer as linhagens intelectuais que se movimentam no campo de batalha, desde os gregos antigos até os nomes de hoje.

Ao questionar-se sobre a existência de algo que possa ser identificado como “a verdade” e, em especial, a possibilidade ou a impossibilidade de virmos a reconhecê-la, o autor cuida de revelar a filosofia avaliando a natureza sobre a qual esta se sustenta: os limites entre percepção, linguagem, fé, razão, conhecimento e senso comum (que são muito mais estreitos do que nossa arrogância venha a admitir).

“A princípio, o conflito não é apenas entre diferentes indivíduos, mas sons inarticulados dentro do peito de cada um, conforme encontramos vozes dentro de nós mesmos a nos puxar para um ou outro lado.”, observa Blackburn na introdução. E mesmo não ambicionando solucionar impasse algum, o autor não se priva de, pelo menos, indicar uma luz, um ponto de partida aos que se arriscam pelos caminhos da verdade. E a indicação está no próprio título do livro, que menciona os perplexos ou os confusos. Aqueles que admitem a perplexidade talvez estejam qualificados a “navegar por águas mais profundas”. O perplexo não é o cético nem o absolutista, nem o contextualista ou o universalista e, tampouco, o pragmático ou o platônico. O perplexo pode ter um desses temperamentos, mas, a despeito de qualquer um deles, é quem admite a própria dúvida e o assombro – e, dessa postura inicial, mostra-se pronto para encarar o desafio do conhecimento. Ou seja, não é o sujeito que assobia para disfarçar o medo, mas quem, ao invés de expiar, assume o desconforto. Aceita que não sabe, se permite não saber... cai em si: não sei! “É fácil sentir-se amedrontado no início do século XXI. E entre as coisas mais assustadoras estão as mentes alheias.”, desabafa e compartilha o professor Simon Blackburn, 62 anos, ao abrir o prefácio da obra.

Agora é com você, perplexo leitor, escolha suas armas ou... desarme-se.


VERDADE: UM GUIA PARA OS PERPLEXOS
De Simon Blackburn;
Tradução de Marilene Tombini,
Civilização Brasileira,
350 páginas.
Preço: R$ 44,90