domingo, 2 de março de 2008

VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA



por Raquel Hoersting


O absolutista comemora com alarido sua visão simples: o relativista só vê alguém que está inconsciente de seus próprios antolhos. O absolutista desfila seus bons e sólidos fundamentos na observação, razão, objetividade, verdade e fato. O relativista só vê fetiches. O absolutista empenha-se em falar para a posteridade, com a linguagem dos anjos, mas o relativista só ouve uma das versões entre muitas, a subjetividade do aqui e agora. O absolutista empenha-se em ler a natureza em sua própria linguagem, mas o relativista insiste que a natureza não fala e nós ouvimos apenas o que escolhemos ouvir. O absolutista dita a lei, mas o que o relativista ouve são só brados e apregoações. Ou, quando a voz relativista, como é ouvida de filósofos como Nietzsche ou James, começa ela mesma a soar e parecer estridente, como muitas vezes acontece, e quando então o relativista oferece concessões, o absolutista só ouve insinceridade.

Simon Blackburn em Verdade: um guia para os perplexos; página 22




VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA

Por Rafael Baliardo

O nome do livro simplesmente é Verdade. A capa da edição brasileira, além dos dados usuais – o nome do autor, a editora e o "subtítulo" (Um guia para os perplexos) –, traz ainda um imenso ponto de interrogação sobre um fundo em terracota. Poucas coisas soam tão honestas quanto um ponto de interrogação, especialmente em um livro qualificado como guia sobre "a verdade”. Ainda na capa, o nome do autor é capaz de desencorajar a relutância dos mais criteriosos em relação à credibilidade da obra (com um título desses, todo cuidado é pouco): trata-se de Simon Blackburn, professor de filosofia da Universidade de Cambridge, Inglaterra, colaborador do influente Dicionário Oxford de Filosofia e que escreveu os populares Think (em português, apenas pelo selo lusitano Gradiva) e Being Good: A Short Introduction to Ethics. E não se engane o leitor, o fato de os livros serem dirigidos ao grande público não os desabona. Pelo contrário, o scholar inglês Simon Blackburn é o primeiro a esclarecer, em entrevistas e conferências, que apresentar a filosofia a estudantes e a leigos é um trabalho nobre e árduo. E faz questão de lembrar que filósofos como David Hume e James Hill escreviam para os legisladores, bem como para o público em geral.

Os tempos são outros, é evidente. E talvez, justo por isso, a presença de um livro como Verdade: um guia para os perplexos, nas estantes das livrarias, seja mais oportuno do que avaliamos. No Brasil, o mérito é da editora Civilização Brasileira, que disponibiliza uma bela edição em português (a tradução de Marilene Tombini é de alto nível).
Por afinidade, o lançamento de Blackburn, é lógico, deveria ficar exposto próximo a obras de filosofia, mas, por um intuito estratégico, deve ficar ao lado de títulos, digamos, mais embaraçosos aos olhos de alguns, como Mais Platão, menos Prozac ou Jesus, o maior psicólogo que já existiu, seja por oferecer resistência aos vizinhos ou beneficiar-se do potencial de atração destes.

Aos perplexos a quem o livro é direcionado, Blackburn acabou dedicando um singular manual de filosofia concebido em torno da questão que é o epicentro de toda a ciência: o conceito de verdade. O ponto de partida e o eixo dos ensaios que formam o livro (agrupados em tom de manual) se orientam por uma constatação – a filosofia sempre foi coisa de oponentes, tais quais a política e os esportes. E ao mapear as guerras pela busca da verdade, o autor nos apresenta, não só, uma visão de como a filosofia nasceu e evoluiu, mas argumenta sobre a própria possibilidade de existência da filosofia.

Blackburn entregou-se ao desafio de fazer justiça aos dois exércitos que, há séculos, travam uma luta quase sem tréguas. De um lado, os filósofos que respondem a um temperamento absolutista e, de outro, os que se inflamam e encontram forças no temperamento relativista. Fazer justiça a ambos os lados, ao absolutismo e ao relativismo, entretanto, sem, para isso, soar indiferente ou em cima do muro e, menos ainda, tentar aplicar uma taxonomia artificial ao dividir em grupos os filósofos de todos os tempos. O que não impediu o autor de reconhecer as linhagens intelectuais que se movimentam no campo de batalha, desde os gregos antigos até os nomes de hoje.

Ao questionar-se sobre a existência de algo que possa ser identificado como “a verdade” e, em especial, a possibilidade ou a impossibilidade de virmos a reconhecê-la, o autor cuida de revelar a filosofia avaliando a natureza sobre a qual esta se sustenta: os limites entre percepção, linguagem, fé, razão, conhecimento e senso comum (que são muito mais estreitos do que nossa arrogância venha a admitir).

“A princípio, o conflito não é apenas entre diferentes indivíduos, mas sons inarticulados dentro do peito de cada um, conforme encontramos vozes dentro de nós mesmos a nos puxar para um ou outro lado.”, observa Blackburn na introdução. E mesmo não ambicionando solucionar impasse algum, o autor não se priva de, pelo menos, indicar uma luz, um ponto de partida aos que se arriscam pelos caminhos da verdade. E a indicação está no próprio título do livro, que menciona os perplexos ou os confusos. Aqueles que admitem a perplexidade talvez estejam qualificados a “navegar por águas mais profundas”. O perplexo não é o cético nem o absolutista, nem o contextualista ou o universalista e, tampouco, o pragmático ou o platônico. O perplexo pode ter um desses temperamentos, mas, a despeito de qualquer um deles, é quem admite a própria dúvida e o assombro – e, dessa postura inicial, mostra-se pronto para encarar o desafio do conhecimento. Ou seja, não é o sujeito que assobia para disfarçar o medo, mas quem, ao invés de expiar, assume o desconforto. Aceita que não sabe, se permite não saber... cai em si: não sei! “É fácil sentir-se amedrontado no início do século XXI. E entre as coisas mais assustadoras estão as mentes alheias.”, desabafa e compartilha o professor Simon Blackburn, 62 anos, ao abrir o prefácio da obra.

Agora é com você, perplexo leitor, escolha suas armas ou... desarme-se.


VERDADE: UM GUIA PARA OS PERPLEXOS
De Simon Blackburn;
Tradução de Marilene Tombini,
Civilização Brasileira,
350 páginas.
Preço: R$ 44,90

2 comentários:

Valdi Craveiro Bezerra disse...

Caro Rafael

É impossível não querer ler o livro, após ler sua resenha.

Parece-me que seu blog responderá uma pergunta: "o que você deve escolher para ler no pouco tempo que você tem?"
Você começou, não pare!
Um grande abraço.
Valdi

Unknown disse...

Rafael
Tenho muito trabalho para motivar os meus alunos a ler e a aprender sobre resenha. Vou indicar o teu blog. Textos motivadores...!