quinta-feira, 2 de outubro de 2008

FÉ NA ESCRITA

(versão revista do texto publicado originalmente na edição de 12 de abril de 2008 do jornal Correio Braziliense)



RAFAEL BALIARDO
ESPECIAL PARA O CORREIO

Depois de longos e angustiantes sete anos de embate íntimo, travado no interior de um soturno convento inglês, a jovem britânica Karen Armstrong, então com vinte e quatro anos, resolveu jogar a toalha. Era 1969 e chegava ao fim uma década que dispensa legendas. Com a fé fustigada pelo sofrimento decorrente de seu malsucedido interlúdio monástico e com a mente em frangalhos por conta do desapontamento com a vida religiosa, a ex-freira abraçava novamente a vida secular já no epílogo da agitada década que não viu acontecer. Aos dezessete anos, em 1962, contrariando a família de raízes irlandesas e de orientação católica não-praticante, Karen, natural da interiorana Wildmoor, localizada no condado inglês de Worcestershire, escolhera talvez um caminho árduo demais para a pouca idade e a falta de experiência. Ao ingressar como noviça na ordem religiosa Sociedade do Sagrado Menino Jesus, a jovem não podia prever os anos sombrios e as desilusões sucessivas que tinha pela frente. Em 1965, ao confirmar os votos de freira, conseguiu, em paralelo, a autorização da ordem para estudar literatura em Oxford. Contudo, nem mesmo essa tomada de fôlego ao freqüentar a universidade, a verve acadêmica ou a paixão por poesia conseguiriam atenuar a surpresa da noviça com o vazio de sentido dos votos de pobreza, com a apatia burocrática das irmãs de congregação e, tampouco, frear a decepção da moça com a aspereza mecânica do claustro.

Conhecida hoje por seus livros sobre religião, Karen Armstrong tem em suas credenciais o apelo dramático que preenche romanticamente os perfis resenhados sobre ela “imprensa afora”. A “freira em fuga” de língua afiada que comparou o papa João Paulo II a um fundamentalista islâmico. E que presenteou os ingleses, em seu livro de estréia (o inédito no Brasil Through the narrow gate, 1982), com um gênero muito popular por lá, os tell-all books (livros que contam tudo), onde jogou a sujeira no ventilador, descrevendo a tortura dos anos de claustro, pegando pesado com as freiras e com a igreja católica.

No Brasil, com parte considerável da obra da inglesa publicada pela Companhia das Letras e pela editora Objetiva, são lançados, neste início de ano, quase que simultaneamente por duas editoras diferentes, os dois últimos livros escritos por ela. Pela Companhia das Letras, A Grande Transformação – o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias (2006) e pela Jorge Zahar Editor, A Bíblia [uma biografia] (2007). Na capa da edição brasileira de A Grande Transformação, o nome de Sócrates foi suprimido. A Bíblia abre a coleção Livros que mudaram o mundo da Jorge Zahar, que deve incluir ainda títulos sobre A República de Platão, assinado pelo filósofo inglês Simon Blackburn, e sobre Os direitos do homem de Thomas Paine, pelo jornalista Christopher Hitchens, entre outros.

"Sad Karen" por Raquel Hoersting


É evidente que a aposta não é só no peso do nome da escritora. Livros sobre religião sempre foram populares e, nos últimos anos, o interesse foi reciclado por conta do filão aberto pelo viés conspiratório desavergonhado de O Código da Vinci (2003), ou pelos encrenqueiros da brigada atéia liderada pelo biólogo inglês Richard Dawkins.

As credenciais biográficas de Armstrong incluem ainda as agruras sofridas durante seu período cético-materialista, do desligamento da ordem religiosa, passando pelo redescobrimento dos temas mitológicos, até se tornar uma autora de renome. Impedida de lecionar literatura na Universidade de Londres após sua tese de doutoramento sobre o poeta inglês Alfred Tennyson (1809-1892) ser rejeitada em Oxford, teve que lidar com uma epilepsia que sugou todas as suas forças e a obrigou a abandonar o trabalho de diretora de departamento numa escola feminina.

Depois de anos, em 1984, as coisas começaram a melhorar quando ela participou da produção de um documentário promovido por um canal inglês sobre a vida de são Paulo. O trabalho de investigação e as filmagens a levaram a Jerusalém e a fizeram rever suas impressões sobre a religiosidade que rejeitara desde a saída do convento. De lá para cá, fez a reputação escrevendo sobre mitologia e história das religiões. O período entre “as duas Karen” é descrito em A escada espiral (2004), um dos best-sellers da autora, uma espécie de revisão da prematuridade de Through the narrow gate e do oportunista Beginning the world (1983). Aos poucos e naturalmente, ela e seus agentes literários trabalharam sua imagem como uma competente divulgadora focada nas religiões abraâmicas, como estudiosa do fundamentalismo, fenômeno que assola especialmente o culto monoteísta, e, não menos importante, como militante contra os preconceitos sofridos pelo islamismo no ocidente. Funcionou, Karen Armstrong está mais em evidência do que os livros que escreve.


Monoteísta freelancer
O renome não é fruto apenas de modismos jornalísticos. Karen Armstrong não é uma ensaísta insuperável, porém é uma pesquisadora ambivalente, loquaz e sensível a dados técnicos conhecidos apenas por estudiosos. Como expert em religiões monoteístas, nos lembra que o fundamentalismo é um fenômeno que também tem raízes modernas; até o século XIX, quase ninguém lia o capítulo de abertura da Bíblia literalmente, compreendendo as histórias como episódios factuais. Isso seria sinal de profunda estupidez e absoluta superficialidade espiritual, dá a entender a autora em A Bíblia. Como interlocutora do islamismo, teceu críticas ao perfil negativo do profeta Maomé sugerido em Os versos satânicos (1989), do “anglo-indiano” Salman Rushdie, não se furtando de lamentar com estridência o fatwa de morte proferido contra o escritor pelo aiatolá Khomeini.

Odiada pelos católicos ingleses que ainda não a perdoaram pela indiscrição de seu livro de estréia (e que chegaram a se organizar, enviando excrementos pelo correio à autora), é respeitada pelos muçulmanos que vivem no ocidente, tendo sido escolhida, em 2005, pelas Nações Unidas para participar de um programa de estabelecimento de diálogo entre os países ocidentais e o Islã.

Qualifica a si mesma de “monoteísta freelancer”, não professa fé alguma, participa, sem constrangimentos, de programas televisivos e de rádio e, apesar de críticas técnicas ao seu trabalho de pesquisadora, não é de todo rejeitada no mainstream acadêmico. Assinou o prefácio de uma reedição americana da novela Freiras e Soldados (1980), obra da romancista irlandesa Iris Murdoch (1919-1999), do mesmo modo que participou de uma coletânea que incluía textos de Mahatma Gandhi e Dalai Lama, lado a lado com os escritos de sua autoria.

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