quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A SUTIL ARTE DA DÚVIDA

(versão revista do texto publicado originalmente na edição de 12 de abril de 2008 do jornal Correio Braziliense)


por Raquel Hoersting


RAFAEL BALIARDO
ESPECIAL PARA O CORREIO
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Em um programa de rádio veiculado há quase dois anos pela conceituada National Public Radio, a autora inglesa especializada em religiões, Karen Armstrong, soando como uma cordata senhora na casa dos sessenta anos, dispôs de quase uma hora para fazer suas considerações habituais sobre temas como comportamento religioso, fanatismo, ceticismo e espiritualidade ao público "médio" norte-americano, para uma audiência notoriamente cristã. Falando à rádio pública dos Estados Unidos, escolhia com cautela cada palavra e se fazia entender com a clareza excepcional de uma comunicadora calejada por polêmicas. Em momentos oportunos, Karen pôde deixar evidente a sua relação com os temas sobre os quais construiu uma carreira editorial. “A boa teologia é como poesia”, arriscou a escritora em determinado ponto da conversa com a radialista que a entrevistava.

A afirmação da autora revela algo sobre o estilo dos seus dois livros mais recentes, A Grande Transformação e A Bíblia [uma biografia]. O primeiro deles, um "ensaio de fôlego" calcado na hipótese defendida, sei lá quando no século XX, pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969), de que os alicerces da forma de pensar contemporânea, do estágio cognitivo em que nos encontramos (uma meia-boca entre razão e crença, um meio de caminho entre racionalidade e comportamento ritualístico) foram estabelecidos entre os séculos 900 e 200 a.C., quando - digamos - as "bases" dos grandes conceitos filosóficos e religiosos se configuraram e forçaram a humanidade a uma nova etapa intelectual: abandonamos progressivamente o mito e abraçamos a razão mitológico-filosófica. Não partimos do mito em direção a uma "razão plena".

Trata-se de uma investigação articulada pela autora sobre esse período da história quando se consolidaram o misticismo hindu, o budismo, o sistema de aforismos chineses, o monoteísmo hebraico e a filosofia grega. O que afinal aconteceu nesse intervalo de tempo? Há qualquer relação entre essas tradições? Quais são o caráter, a natureza e o grau de similaridade entre esses modos de pensar? E há, de fato, evidências da contemporaneidade entre esses modelos filosófico-religiosos? Questionando incorreções do próprio Karl Jaspers e estabelecendo relações entre uma vasta e confusa gama de dados e argumentos, Karen Armstrong se esforça para demonstrar que não é apenas uma mera revisionista.

A Bíblia não é um texto depurado com a mesma atenção ao estilo e aos detalhes do que A Grande Transformação. É tão somente um breve roteiro de oito capítulos curtos que oferece um panorama de como o livro mais influente na história da humanidade foi criado, escrito, reescrito, editado, reeditado e, sobretudo, "lido" e compreendido ao longo de um período de mais de dois mil anos. De que forma um compêndio poético e mitológico, composto por inúmeras mãos, chegou ao nosso tempo no formato de uma carta de ortodoxias e certezas infantis? Não é uma biografia pormenorizada da Bíblia, mas um resumo eficiente para se entender que as Escrituras não podem ser lidas com um descuido apático e, tampouco, num ímpeto de paixão. Para começar, qual das bíblias? A hebraica? A católica? A Bíblia de Genebra? A shakesperiana tradução autorizada pelo rei James no século XVII, cujo léxico mudou para sempre o destino da língua inglesa?

A ligeira vantagem dos títulos de Armstrong em relação a outras obras sobre religião dedicadas ao público leigo é que o levantamento sofisticado de dados promovido pela autora fala por si além de argumentos mirabolantes e da overdose de opiniões. E não me refiro ao contorcionismo retórico de Jesus de Nazaré (Planeta, 2007) do eminente teólogo Joseph Ratzinger e atual papa Bento XVI. E sim à pertinência das explicações do biólogo Richard Dawkins em Deus: uma ilusão, do jornalista Christopher Hitchens em Deus não é grande e do filósofo Sam Harris em Cartas a uma nação cristã. E ao fato desses títulos "serem urgentes" frente ao espaço que a crença "ainda" ocupa na vida humana contemporânea. Partindo da perspectiva esboçada por Karen Armstrong, é possível concluir que o ateísmo não escapa à crença, ao contrário, configura, sim, uma crença na não-existência de algo, portanto, é ironicamente uma forma de pensar ainda presa à esfera da fé. Enquanto que a articulação do ceticismo, mais próxima do rótulo do agnosticismo e ajustando o foco bifásico de crer ou descrer simplesmente, é motivada e orientada pela curiosidade em relação ao objeto, e não pela necessidade prévia de defendê-lo ou desconfirmá-lo. O ceticismo não consiste no ato simples de duvidar, mas de se relacionar com a dúvida permanente, administrando certezas provisórias que tornam a vida possível. Nos seus melhores momentos, a pretensão de ateísmo desses autores nos chama à lucidez e à razoabilidade e, nos piores, ignora o aparato mitológico por trás das tradições religiosas. Portanto, em seus textos, acabam por confundir o exame objetivo do comportamento religioso (um padrão de cognição presente desde tempos em que o homem habitava cavernas) com provocações pseudo-teológicas: “Deus não é grande”. A idéia não é grande? O equívoco não é grande? Algo para além do conceito é pequeno?

Deus, o mythos assombroso que perdura por gerações, nos lembra a autora de A Bíblia, é paradoxal demais para ser reduzido a um simples e improvável delirium, a um mero e inconcebível equívoco temporalmente persistente de multidões, mesmo se, enquanto idéia, tomada por absolutamente falsa. Se entendermos por "falsidade", evidente, o fruto de um lapso de cognição ou de consciência que sustenta um milenar vício de pensamento coletivo.

O conceito de relação entre crença e poesia não é algo exatamente novo. Karen Armstrong não pertence à “linhagem”, mas paga tributo, por caminhos indiretos, a um “grupo” de pensadores em franca atividade entre as décadas de 1930 e 50 e que infelizmente tiveram suas idéias pasteurizadas a partir dos anos 60 (o período em que ela passou enclausurada no convento) pela “contracultura”, pelo senso comum hippie, pela indústria cultural, por academicismos, por agremiações de idólatras e, nos anos 1990 – a pá de cal –, pela onda new age. Pensadores como Carl Jung, Joseph Campbell, Karl Kerényi e Mircea Eliade que, ao investigar os mitos e a religião, levaram em conta que respostas racionais, por melhor articuladas que fossem, não esgotavam conclusões sobre o contraditório e superficialmente inteligível comportamento humano. Religião e arte são manifestações simultâneas, as mais primitivas da linguagem. E o encontro das águas entre as duas é a mitologia. Crer e descrer, contra todas as previsões cartesianas, sinalizam duas faces de um mesmo modelo de cognição, senão perene, pelo menos, intangivelmente longevo. Os livros de Armstrong sugerem que nossa irracionalidade está arraigada nas menores coisas. Ou, "por acaso", alguém se habilita a tecer explicações definitivas sobre comportamentos como assistir a um filme de ficção ou torcer por um time de futebol? Por que, depois de milênios, ainda nos entregamos a representações dessa natureza? Karen Armstrong nos diz que a resposta, perdida em algum ponto do passado ou exilada no futuro, está escrita em versos e em uma língua que ainda não podemos ler.

A GRANDE TRANSFORMAÇÃO – O MUNDO NA ÉPOCA DE BUDA, SÓCRATES, CONFÚCIO E JEREMIAS
Companhia das Letras, 496 páginas, R$ 63.

A BÍBLIA [UMA BIOGRAFIA]
Jorge Zahar Editor, 278 páginas, R$ 39,90.

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