quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A SUTIL ARTE DA DÚVIDA

(versão revista do texto publicado originalmente na edição de 12 de abril de 2008 do jornal Correio Braziliense)


por Raquel Hoersting


RAFAEL BALIARDO
ESPECIAL PARA O CORREIO
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Em um programa de rádio veiculado há quase dois anos pela conceituada National Public Radio, a autora inglesa especializada em religiões, Karen Armstrong, soando como uma cordata senhora na casa dos sessenta anos, dispôs de quase uma hora para fazer suas considerações habituais sobre temas como comportamento religioso, fanatismo, ceticismo e espiritualidade ao público "médio" norte-americano, para uma audiência notoriamente cristã. Falando à rádio pública dos Estados Unidos, escolhia com cautela cada palavra e se fazia entender com a clareza excepcional de uma comunicadora calejada por polêmicas. Em momentos oportunos, Karen pôde deixar evidente a sua relação com os temas sobre os quais construiu uma carreira editorial. “A boa teologia é como poesia”, arriscou a escritora em determinado ponto da conversa com a radialista que a entrevistava.

A afirmação da autora revela algo sobre o estilo dos seus dois livros mais recentes, A Grande Transformação e A Bíblia [uma biografia]. O primeiro deles, um "ensaio de fôlego" calcado na hipótese defendida, sei lá quando no século XX, pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969), de que os alicerces da forma de pensar contemporânea, do estágio cognitivo em que nos encontramos (uma meia-boca entre razão e crença, um meio de caminho entre racionalidade e comportamento ritualístico) foram estabelecidos entre os séculos 900 e 200 a.C., quando - digamos - as "bases" dos grandes conceitos filosóficos e religiosos se configuraram e forçaram a humanidade a uma nova etapa intelectual: abandonamos progressivamente o mito e abraçamos a razão mitológico-filosófica. Não partimos do mito em direção a uma "razão plena".

Trata-se de uma investigação articulada pela autora sobre esse período da história quando se consolidaram o misticismo hindu, o budismo, o sistema de aforismos chineses, o monoteísmo hebraico e a filosofia grega. O que afinal aconteceu nesse intervalo de tempo? Há qualquer relação entre essas tradições? Quais são o caráter, a natureza e o grau de similaridade entre esses modos de pensar? E há, de fato, evidências da contemporaneidade entre esses modelos filosófico-religiosos? Questionando incorreções do próprio Karl Jaspers e estabelecendo relações entre uma vasta e confusa gama de dados e argumentos, Karen Armstrong se esforça para demonstrar que não é apenas uma mera revisionista.

A Bíblia não é um texto depurado com a mesma atenção ao estilo e aos detalhes do que A Grande Transformação. É tão somente um breve roteiro de oito capítulos curtos que oferece um panorama de como o livro mais influente na história da humanidade foi criado, escrito, reescrito, editado, reeditado e, sobretudo, "lido" e compreendido ao longo de um período de mais de dois mil anos. De que forma um compêndio poético e mitológico, composto por inúmeras mãos, chegou ao nosso tempo no formato de uma carta de ortodoxias e certezas infantis? Não é uma biografia pormenorizada da Bíblia, mas um resumo eficiente para se entender que as Escrituras não podem ser lidas com um descuido apático e, tampouco, num ímpeto de paixão. Para começar, qual das bíblias? A hebraica? A católica? A Bíblia de Genebra? A shakesperiana tradução autorizada pelo rei James no século XVII, cujo léxico mudou para sempre o destino da língua inglesa?

A ligeira vantagem dos títulos de Armstrong em relação a outras obras sobre religião dedicadas ao público leigo é que o levantamento sofisticado de dados promovido pela autora fala por si além de argumentos mirabolantes e da overdose de opiniões. E não me refiro ao contorcionismo retórico de Jesus de Nazaré (Planeta, 2007) do eminente teólogo Joseph Ratzinger e atual papa Bento XVI. E sim à pertinência das explicações do biólogo Richard Dawkins em Deus: uma ilusão, do jornalista Christopher Hitchens em Deus não é grande e do filósofo Sam Harris em Cartas a uma nação cristã. E ao fato desses títulos "serem urgentes" frente ao espaço que a crença "ainda" ocupa na vida humana contemporânea. Partindo da perspectiva esboçada por Karen Armstrong, é possível concluir que o ateísmo não escapa à crença, ao contrário, configura, sim, uma crença na não-existência de algo, portanto, é ironicamente uma forma de pensar ainda presa à esfera da fé. Enquanto que a articulação do ceticismo, mais próxima do rótulo do agnosticismo e ajustando o foco bifásico de crer ou descrer simplesmente, é motivada e orientada pela curiosidade em relação ao objeto, e não pela necessidade prévia de defendê-lo ou desconfirmá-lo. O ceticismo não consiste no ato simples de duvidar, mas de se relacionar com a dúvida permanente, administrando certezas provisórias que tornam a vida possível. Nos seus melhores momentos, a pretensão de ateísmo desses autores nos chama à lucidez e à razoabilidade e, nos piores, ignora o aparato mitológico por trás das tradições religiosas. Portanto, em seus textos, acabam por confundir o exame objetivo do comportamento religioso (um padrão de cognição presente desde tempos em que o homem habitava cavernas) com provocações pseudo-teológicas: “Deus não é grande”. A idéia não é grande? O equívoco não é grande? Algo para além do conceito é pequeno?

Deus, o mythos assombroso que perdura por gerações, nos lembra a autora de A Bíblia, é paradoxal demais para ser reduzido a um simples e improvável delirium, a um mero e inconcebível equívoco temporalmente persistente de multidões, mesmo se, enquanto idéia, tomada por absolutamente falsa. Se entendermos por "falsidade", evidente, o fruto de um lapso de cognição ou de consciência que sustenta um milenar vício de pensamento coletivo.

O conceito de relação entre crença e poesia não é algo exatamente novo. Karen Armstrong não pertence à “linhagem”, mas paga tributo, por caminhos indiretos, a um “grupo” de pensadores em franca atividade entre as décadas de 1930 e 50 e que infelizmente tiveram suas idéias pasteurizadas a partir dos anos 60 (o período em que ela passou enclausurada no convento) pela “contracultura”, pelo senso comum hippie, pela indústria cultural, por academicismos, por agremiações de idólatras e, nos anos 1990 – a pá de cal –, pela onda new age. Pensadores como Carl Jung, Joseph Campbell, Karl Kerényi e Mircea Eliade que, ao investigar os mitos e a religião, levaram em conta que respostas racionais, por melhor articuladas que fossem, não esgotavam conclusões sobre o contraditório e superficialmente inteligível comportamento humano. Religião e arte são manifestações simultâneas, as mais primitivas da linguagem. E o encontro das águas entre as duas é a mitologia. Crer e descrer, contra todas as previsões cartesianas, sinalizam duas faces de um mesmo modelo de cognição, senão perene, pelo menos, intangivelmente longevo. Os livros de Armstrong sugerem que nossa irracionalidade está arraigada nas menores coisas. Ou, "por acaso", alguém se habilita a tecer explicações definitivas sobre comportamentos como assistir a um filme de ficção ou torcer por um time de futebol? Por que, depois de milênios, ainda nos entregamos a representações dessa natureza? Karen Armstrong nos diz que a resposta, perdida em algum ponto do passado ou exilada no futuro, está escrita em versos e em uma língua que ainda não podemos ler.

A GRANDE TRANSFORMAÇÃO – O MUNDO NA ÉPOCA DE BUDA, SÓCRATES, CONFÚCIO E JEREMIAS
Companhia das Letras, 496 páginas, R$ 63.

A BÍBLIA [UMA BIOGRAFIA]
Jorge Zahar Editor, 278 páginas, R$ 39,90.

FÉ NA ESCRITA

(versão revista do texto publicado originalmente na edição de 12 de abril de 2008 do jornal Correio Braziliense)



RAFAEL BALIARDO
ESPECIAL PARA O CORREIO

Depois de longos e angustiantes sete anos de embate íntimo, travado no interior de um soturno convento inglês, a jovem britânica Karen Armstrong, então com vinte e quatro anos, resolveu jogar a toalha. Era 1969 e chegava ao fim uma década que dispensa legendas. Com a fé fustigada pelo sofrimento decorrente de seu malsucedido interlúdio monástico e com a mente em frangalhos por conta do desapontamento com a vida religiosa, a ex-freira abraçava novamente a vida secular já no epílogo da agitada década que não viu acontecer. Aos dezessete anos, em 1962, contrariando a família de raízes irlandesas e de orientação católica não-praticante, Karen, natural da interiorana Wildmoor, localizada no condado inglês de Worcestershire, escolhera talvez um caminho árduo demais para a pouca idade e a falta de experiência. Ao ingressar como noviça na ordem religiosa Sociedade do Sagrado Menino Jesus, a jovem não podia prever os anos sombrios e as desilusões sucessivas que tinha pela frente. Em 1965, ao confirmar os votos de freira, conseguiu, em paralelo, a autorização da ordem para estudar literatura em Oxford. Contudo, nem mesmo essa tomada de fôlego ao freqüentar a universidade, a verve acadêmica ou a paixão por poesia conseguiriam atenuar a surpresa da noviça com o vazio de sentido dos votos de pobreza, com a apatia burocrática das irmãs de congregação e, tampouco, frear a decepção da moça com a aspereza mecânica do claustro.

Conhecida hoje por seus livros sobre religião, Karen Armstrong tem em suas credenciais o apelo dramático que preenche romanticamente os perfis resenhados sobre ela “imprensa afora”. A “freira em fuga” de língua afiada que comparou o papa João Paulo II a um fundamentalista islâmico. E que presenteou os ingleses, em seu livro de estréia (o inédito no Brasil Through the narrow gate, 1982), com um gênero muito popular por lá, os tell-all books (livros que contam tudo), onde jogou a sujeira no ventilador, descrevendo a tortura dos anos de claustro, pegando pesado com as freiras e com a igreja católica.

No Brasil, com parte considerável da obra da inglesa publicada pela Companhia das Letras e pela editora Objetiva, são lançados, neste início de ano, quase que simultaneamente por duas editoras diferentes, os dois últimos livros escritos por ela. Pela Companhia das Letras, A Grande Transformação – o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias (2006) e pela Jorge Zahar Editor, A Bíblia [uma biografia] (2007). Na capa da edição brasileira de A Grande Transformação, o nome de Sócrates foi suprimido. A Bíblia abre a coleção Livros que mudaram o mundo da Jorge Zahar, que deve incluir ainda títulos sobre A República de Platão, assinado pelo filósofo inglês Simon Blackburn, e sobre Os direitos do homem de Thomas Paine, pelo jornalista Christopher Hitchens, entre outros.

"Sad Karen" por Raquel Hoersting


É evidente que a aposta não é só no peso do nome da escritora. Livros sobre religião sempre foram populares e, nos últimos anos, o interesse foi reciclado por conta do filão aberto pelo viés conspiratório desavergonhado de O Código da Vinci (2003), ou pelos encrenqueiros da brigada atéia liderada pelo biólogo inglês Richard Dawkins.

As credenciais biográficas de Armstrong incluem ainda as agruras sofridas durante seu período cético-materialista, do desligamento da ordem religiosa, passando pelo redescobrimento dos temas mitológicos, até se tornar uma autora de renome. Impedida de lecionar literatura na Universidade de Londres após sua tese de doutoramento sobre o poeta inglês Alfred Tennyson (1809-1892) ser rejeitada em Oxford, teve que lidar com uma epilepsia que sugou todas as suas forças e a obrigou a abandonar o trabalho de diretora de departamento numa escola feminina.

Depois de anos, em 1984, as coisas começaram a melhorar quando ela participou da produção de um documentário promovido por um canal inglês sobre a vida de são Paulo. O trabalho de investigação e as filmagens a levaram a Jerusalém e a fizeram rever suas impressões sobre a religiosidade que rejeitara desde a saída do convento. De lá para cá, fez a reputação escrevendo sobre mitologia e história das religiões. O período entre “as duas Karen” é descrito em A escada espiral (2004), um dos best-sellers da autora, uma espécie de revisão da prematuridade de Through the narrow gate e do oportunista Beginning the world (1983). Aos poucos e naturalmente, ela e seus agentes literários trabalharam sua imagem como uma competente divulgadora focada nas religiões abraâmicas, como estudiosa do fundamentalismo, fenômeno que assola especialmente o culto monoteísta, e, não menos importante, como militante contra os preconceitos sofridos pelo islamismo no ocidente. Funcionou, Karen Armstrong está mais em evidência do que os livros que escreve.


Monoteísta freelancer
O renome não é fruto apenas de modismos jornalísticos. Karen Armstrong não é uma ensaísta insuperável, porém é uma pesquisadora ambivalente, loquaz e sensível a dados técnicos conhecidos apenas por estudiosos. Como expert em religiões monoteístas, nos lembra que o fundamentalismo é um fenômeno que também tem raízes modernas; até o século XIX, quase ninguém lia o capítulo de abertura da Bíblia literalmente, compreendendo as histórias como episódios factuais. Isso seria sinal de profunda estupidez e absoluta superficialidade espiritual, dá a entender a autora em A Bíblia. Como interlocutora do islamismo, teceu críticas ao perfil negativo do profeta Maomé sugerido em Os versos satânicos (1989), do “anglo-indiano” Salman Rushdie, não se furtando de lamentar com estridência o fatwa de morte proferido contra o escritor pelo aiatolá Khomeini.

Odiada pelos católicos ingleses que ainda não a perdoaram pela indiscrição de seu livro de estréia (e que chegaram a se organizar, enviando excrementos pelo correio à autora), é respeitada pelos muçulmanos que vivem no ocidente, tendo sido escolhida, em 2005, pelas Nações Unidas para participar de um programa de estabelecimento de diálogo entre os países ocidentais e o Islã.

Qualifica a si mesma de “monoteísta freelancer”, não professa fé alguma, participa, sem constrangimentos, de programas televisivos e de rádio e, apesar de críticas técnicas ao seu trabalho de pesquisadora, não é de todo rejeitada no mainstream acadêmico. Assinou o prefácio de uma reedição americana da novela Freiras e Soldados (1980), obra da romancista irlandesa Iris Murdoch (1919-1999), do mesmo modo que participou de uma coletânea que incluía textos de Mahatma Gandhi e Dalai Lama, lado a lado com os escritos de sua autoria.

domingo, 23 de março de 2008

SOBRE O HORROR



por Raquel Hoersting

POR RAFAEL RIBEIRO BARBOSA

O mosaico do espírito corrompido, da demência da alma, a mise-en-scène do inferno em vida, o sentido dramático da transformação pela corrupção e, nas palavras do argentino Jorge Luis Borges, "o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu". Coração das Trevas (Heart of Darkness) é o clássico de todos os tempos sobre o desequilíbrio humano e a desmontagem da realidade, o anúncio do silêncio profundo, da selva impenetrável.

Joseph Conrad (Józef Teodor Nałęcz Korzeniowski) nasceu em Berdyczew, Polônia, em dezembro de 1857, e morreu em Bishopsbourne, Inglaterra, em agosto de 1924. Um dos mais significativos ficcionistas da língua inglesa, veio aprender plenamente o idioma somente após os vinte anos de idade. Marinheiro por quase duas décadas, alcançando o posto de capitão-de-longo-curso (que é quem comanda as naus comerciais), navegou pela Ásia, África, América e Europa. Viagens que claramente inspiraram temas para os seus dezessete romances e ainda contos e novelas.

Escrito em 1902, Coração das Trevas representou e representa mais do que uma ficção crítica sobre o colonialismo europeu. A obra transcendeu, assim, a mera problematização da política imperialista. O romance parte da temática da civilização construída a partir da sofisticação das leis predatórias que regem a vida no planeta, de atos de barbárie para com a suposta barbárie, da civilização edificada sobre ações não civilizadas.

Porém, o tema é um ponto de partida. Joseph Conrad, como aqueles poucos que portam o fogo sagrado, foi além do trinômio social-econômico-político, não ignorando este, porém, o esgotando junto à subjetividade do homem frente ao que desconhece, frente ao ininteligível terror provocado por semelhantes e imposto pelo cosmo que nos rodeia e inclui.

O GRANDE-RIO

A história é a do capitão Charlie Marlow em viagem à África, encarregado por uma companhia belga de exploração de marfim de subir o grande-rio, nas entranhas da selva africana, no interior do Congo, e localizar, dentro da gigantesca mata, Kurtz, o chefe de um posto avançado da companhia. Ao chegar ao continente, Marlow se depara com os negros acorrentados como animais, com o peso da descontrolada ocupação européia, com a violência desmedida por parte dos colonizadores, com a fome, com as doenças “...de uma ganância insensata e desapiedada”. Tudo pelo marfim que “escorre” da floresta, tudo pelo precioso marfim. Então, no Congo, ouve o nome de Kurtz. E vai ouvi-lo muitas vezes até estar convencido de que não se trata de um homem, mas de uma aparição fantasmagórica, de uma lenda. Kurtz está isolado na selva e é o responsável pelo posto comercial localizado estrategicamente “... um homem extraordinário, mensageiro da misericórdia, da ciência, do progresso... do diabo”. Kurtz não é mais humano, é uma entidade.



por Raquel Hoersting




Entre o naufrágio do primeiro barco e a incursão de Marlow rio adentro, decorrem meses. A personagem não viaja sozinha, a acompanham funcionários da empresa, peregrinos, nativos canibais. As histórias sobre Kurtz soam impossíveis, tudo parece, à medida que se aproximam do destino, insano e irreal. “Subir aquele rio era o mesmo que viajar no tempo até os primórdios do mundo, quando a vegetação crescia agreste e desordenada e árvores imensas reinavam sobre todas as coisas”.

Ao se embrenhar nos labirintos da floresta, Marlow percebe que a sombra de Kurtz parece se estender por todo aquele mundo sombrio. Os riscos aumentam. Na água, os bancos de areia, nas margens, os inimigos de dentro da selva. Deve ainda escapar do ataque de negros comandados pelo próprio Kurtz. E, enfim, o Kurtz que encontra, naquele reino verde e primitivo, não é mais o filho de pai meio-francês e de mãe meio-inglesa, não é o membro da Sociedade Internacional para Supressão dos Costumes Bárbaros, também não é mais o homem por quem a noiva, no Reino Unido, mantém o luto respeitoso. Movido pela cobiça - que a mãe-terra plantou em sua carne e com a qual os céus forjicaram o seu ser - ele transformou-se no líder dos nativos, tomado pelo cio messiânico... convertido no lunático, na alma sinistra. Comanda os autóctones pelo medo, através de rituais e práticas macabras aos olhos de Marlow, por meio de armas que os habitantes da floresta desconhecem, mas entendem.

Ao entrar nesse mundo insuportavelmente estranho, contudo, como em um sonho – de alguma forma – um tempo e uma terra que parecem velhos conhecidos, Marlow vislumbra outra imagem, diferente da primeira e mais nítida do que suas impressões aterrorizantes. A figura ameaçadora de Kurtz é o reflexo de um corpo doente e prestes a morrer. Uma sombra débil do mal que representara até ali. É, afinal, Kurtz  a presença maligna no coração da floresta?

O APOCALIPSE E O EFEITO CAOS 

A ficção literária de Joseph Conrad, que inspirou o cineasta norte-americano Francis Ford Coppola a realizar a ficção cinematográfica Apocalypse Now (1979), é o clássico assombroso que descreve a experiência humana em um quadro que nos parece inumano, mas, descobrimos ao ler, é humano e ainda mais misterioso e assustador. Não é “essencialmente” humano, já que inclui a realidade profunda, aquela que transformamos em mito. Portanto, nada me parece mais falso do que a leitura de Coração das Trevas como tão somente uma crítica ao espírito colonialista, ao europeu branco e de coração corrompido a profanar a pureza do continente original, mesmo que esta tenha sido a intenção do autor, o que eu duvido, mas não posso assegurar.

Francis Ford Coppola adaptou a história para a Guerra do Vietnã (1958-1975), transpondo para as trincheiras a ficção de Conrad. Mergulhada numa aura caótica, a produção do filme foi um pesadelo interminável que quase arruinou a carreira de Coppola. Filmando na Ásia, afundado em dívidas, prestes a perder a sua casa e empenhando todos os recursos e potencial nas filmagens, consta ainda que o diretor reescrevia o roteiro diariamente, com o livro em mãos... em meio à lama, aos mosquitos, ao calor, ao infarto do protagonista, ao elenco drogado, a desentendimentos de toda ordem e à pane da infra-estrutura. Quase arruinou financeiramente o estúdio. A salvação da lavoura só ocorreu em Cannes com a Palma de Ouro e também por conta da bilheteria maciça, é claro. Em 2001, o filme foi relançado novamente em Cannes, vinte e dois anos depois da premiação, com 53 minutos a mais e "rebatizado" de Apocalypse Now (Redux).

A guerra sangrenta é um reflexo cultural da bestialidade telúrica, a que fingimos ser exclusividade humana, esquecendo o mito ou o lendo equivocadamente. Ou simplesmente não observando a história natural. De qualquer forma, a imagem do continente africano ocupado, as águas do grande-rio e as trevas da floresta são evocações ainda mais poderosas e inexprimíveis.

[agosto de 2001]

domingo, 2 de março de 2008

VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA



por Raquel Hoersting


O absolutista comemora com alarido sua visão simples: o relativista só vê alguém que está inconsciente de seus próprios antolhos. O absolutista desfila seus bons e sólidos fundamentos na observação, razão, objetividade, verdade e fato. O relativista só vê fetiches. O absolutista empenha-se em falar para a posteridade, com a linguagem dos anjos, mas o relativista só ouve uma das versões entre muitas, a subjetividade do aqui e agora. O absolutista empenha-se em ler a natureza em sua própria linguagem, mas o relativista insiste que a natureza não fala e nós ouvimos apenas o que escolhemos ouvir. O absolutista dita a lei, mas o que o relativista ouve são só brados e apregoações. Ou, quando a voz relativista, como é ouvida de filósofos como Nietzsche ou James, começa ela mesma a soar e parecer estridente, como muitas vezes acontece, e quando então o relativista oferece concessões, o absolutista só ouve insinceridade.

Simon Blackburn em Verdade: um guia para os perplexos; página 22




VERDADE: UM CAMPO DE BATALHA

Por Rafael Baliardo

O nome do livro simplesmente é Verdade. A capa da edição brasileira, além dos dados usuais – o nome do autor, a editora e o "subtítulo" (Um guia para os perplexos) –, traz ainda um imenso ponto de interrogação sobre um fundo em terracota. Poucas coisas soam tão honestas quanto um ponto de interrogação, especialmente em um livro qualificado como guia sobre "a verdade”. Ainda na capa, o nome do autor é capaz de desencorajar a relutância dos mais criteriosos em relação à credibilidade da obra (com um título desses, todo cuidado é pouco): trata-se de Simon Blackburn, professor de filosofia da Universidade de Cambridge, Inglaterra, colaborador do influente Dicionário Oxford de Filosofia e que escreveu os populares Think (em português, apenas pelo selo lusitano Gradiva) e Being Good: A Short Introduction to Ethics. E não se engane o leitor, o fato de os livros serem dirigidos ao grande público não os desabona. Pelo contrário, o scholar inglês Simon Blackburn é o primeiro a esclarecer, em entrevistas e conferências, que apresentar a filosofia a estudantes e a leigos é um trabalho nobre e árduo. E faz questão de lembrar que filósofos como David Hume e James Hill escreviam para os legisladores, bem como para o público em geral.

Os tempos são outros, é evidente. E talvez, justo por isso, a presença de um livro como Verdade: um guia para os perplexos, nas estantes das livrarias, seja mais oportuno do que avaliamos. No Brasil, o mérito é da editora Civilização Brasileira, que disponibiliza uma bela edição em português (a tradução de Marilene Tombini é de alto nível).
Por afinidade, o lançamento de Blackburn, é lógico, deveria ficar exposto próximo a obras de filosofia, mas, por um intuito estratégico, deve ficar ao lado de títulos, digamos, mais embaraçosos aos olhos de alguns, como Mais Platão, menos Prozac ou Jesus, o maior psicólogo que já existiu, seja por oferecer resistência aos vizinhos ou beneficiar-se do potencial de atração destes.

Aos perplexos a quem o livro é direcionado, Blackburn acabou dedicando um singular manual de filosofia concebido em torno da questão que é o epicentro de toda a ciência: o conceito de verdade. O ponto de partida e o eixo dos ensaios que formam o livro (agrupados em tom de manual) se orientam por uma constatação – a filosofia sempre foi coisa de oponentes, tais quais a política e os esportes. E ao mapear as guerras pela busca da verdade, o autor nos apresenta, não só, uma visão de como a filosofia nasceu e evoluiu, mas argumenta sobre a própria possibilidade de existência da filosofia.

Blackburn entregou-se ao desafio de fazer justiça aos dois exércitos que, há séculos, travam uma luta quase sem tréguas. De um lado, os filósofos que respondem a um temperamento absolutista e, de outro, os que se inflamam e encontram forças no temperamento relativista. Fazer justiça a ambos os lados, ao absolutismo e ao relativismo, entretanto, sem, para isso, soar indiferente ou em cima do muro e, menos ainda, tentar aplicar uma taxonomia artificial ao dividir em grupos os filósofos de todos os tempos. O que não impediu o autor de reconhecer as linhagens intelectuais que se movimentam no campo de batalha, desde os gregos antigos até os nomes de hoje.

Ao questionar-se sobre a existência de algo que possa ser identificado como “a verdade” e, em especial, a possibilidade ou a impossibilidade de virmos a reconhecê-la, o autor cuida de revelar a filosofia avaliando a natureza sobre a qual esta se sustenta: os limites entre percepção, linguagem, fé, razão, conhecimento e senso comum (que são muito mais estreitos do que nossa arrogância venha a admitir).

“A princípio, o conflito não é apenas entre diferentes indivíduos, mas sons inarticulados dentro do peito de cada um, conforme encontramos vozes dentro de nós mesmos a nos puxar para um ou outro lado.”, observa Blackburn na introdução. E mesmo não ambicionando solucionar impasse algum, o autor não se priva de, pelo menos, indicar uma luz, um ponto de partida aos que se arriscam pelos caminhos da verdade. E a indicação está no próprio título do livro, que menciona os perplexos ou os confusos. Aqueles que admitem a perplexidade talvez estejam qualificados a “navegar por águas mais profundas”. O perplexo não é o cético nem o absolutista, nem o contextualista ou o universalista e, tampouco, o pragmático ou o platônico. O perplexo pode ter um desses temperamentos, mas, a despeito de qualquer um deles, é quem admite a própria dúvida e o assombro – e, dessa postura inicial, mostra-se pronto para encarar o desafio do conhecimento. Ou seja, não é o sujeito que assobia para disfarçar o medo, mas quem, ao invés de expiar, assume o desconforto. Aceita que não sabe, se permite não saber... cai em si: não sei! “É fácil sentir-se amedrontado no início do século XXI. E entre as coisas mais assustadoras estão as mentes alheias.”, desabafa e compartilha o professor Simon Blackburn, 62 anos, ao abrir o prefácio da obra.

Agora é com você, perplexo leitor, escolha suas armas ou... desarme-se.


VERDADE: UM GUIA PARA OS PERPLEXOS
De Simon Blackburn;
Tradução de Marilene Tombini,
Civilização Brasileira,
350 páginas.
Preço: R$ 44,90